É aí que me pego refletindo... E quando coisas e pessoas se confundem? Qual a dimensão das coisas-pessoas na minha vida? Nossa, que pensamento doloroso... coisas-pessoas ou dito de outra forma... pessoas que foram coisificadas em minha vida para preencher meus espaços vazios que tanto me amedrontam... Parece familiar? Faz muito sentido para mim, cuja solidão é suportada pela minha própria ausência de mim mesma. E deve ser assim. É a solidão dos meus espaços vazios que só podem ser preenchidos por mim mesma. Se um dia eu tentar (e com certeza fiz isso muitas vezes) preencher esse espaço com alguém, esta pessoa se tornará um objeto (pessoa-coisa) em minha vida. Nunca poderá me faltar, nunca poderá se afastar, nunca poderá falhar. E quantas vezes já fiz isto...
Alguns espaços vazios devem ficar assim mesmo... vazios... Disponíveis para minha própria movimentação interna. Disponíveis para experimentar coisas novas, disponíveis para o meu crescimento. Então vem uma palavra muito moderna nos dias de hoje... desapego. Essa palavra me dá arrepios! Em nome do tal desapego as pessoas não se apegam mais, não se vinculam, não se envolvem. Para desapegar é necessário primeiro apegar-se, envolver-se, permitir-se tocar pelo outro que aos poucos ocupa um espaço que nunca foi vazio de todo pois sempre foi ocupado por mim mesma. Somente assim pode-se viver o outro enquanto pessoa, um ser subjetivo e completo que empresta em sua passagem algo de si para mim. Não por obrigação ou por força de preencher o espaço vazio de sua existência, mas por simples permanência e desejo.
Vou recorrer a uma analogia que já usei em outro texto, em outro tempo. Num tempo em que estava refletindo sobre o ser mulher na presença do outro. É um texto que fala da diferença entre a mariposa e a borboleta. Existem várias espécies de mariposas, noturnas, grandes, belas, que vivem nas sombras e aparentemente se alimentam de uma única fonte de luz. A mariposa escolhe uma fonte de luz que lhe confere motivo e razão de viver. E sua vida passa a ser aquela lâmpada acesa, fonte de sua energia, de onde tira (suga) o que necessita para viver. Voa em torno dela e, se a luz se apaga, pousa imóvel aguardando que se acenda novamente. Imagine ser uma lâmpada (pessoa-coisa) para essa mulher-mariposa (também conheço homens assim). Essa luz pode ser um companheiro, um filho, uma empresa, enfim... qualquer coisa que dê total sentido para a existência desta mariposa. Não pode haver falha, não pode se esgotar e deve se deixar “sugar” para que a mulher-mariposa possa continuar viva. É uma relação de dependência mútua, onde um não vive sem o outro, onde um é absorvido pelo outro, onde luz e mariposa passam a viver num ciclo de cobranças, chantagem e culpa. Não é uma relação de amor, é uma relação de dependência e medo de perder, onde nenhum dos dois cresce, e fatalmente com o tempo a luz perde a força e a mariposa morre. Resultado... frustração e vazio...
E a borboleta? Essa é colorida, única. Ela adora a claridade, as flores, adora a vida. A borboleta encanta por onde passa, ela é alegre, ela fertiliza, ela é clara, ela empresta suas cores e sua alegria para o mundo. Uma borboleta tem várias fontes de alimento, varias flores, e com isso ela estabelece uma relação de troca por onde transita. Não se precisa temer uma borboleta. Mas se tentar aprisiona-la, ela morre. Assim é a borboleta. Para se tornar uma borboleta deve passar por transformações importantes – um processo de reclusão dentro de si mesma a que chamamos de metamorfose – até virar um indivíduo adulto. A mulher-borboleta (serve também para os homens) igualmente passa por transformações. Ela precisa amadurecer e encontrar dentro de si a beleza e a alegria de viver. E oferecer isso para as flores que a cercam – filhos, companheiro, amigos, colegas, etc. – distribuindo atenção e recebendo de cada um conforme o que cada um tem pra dar. Isso não sobrecarrega uma só fonte de luz, como no caso da mariposa. Essa relação é uma relação de troca onde o amor pode acontecer e se manter. Uma relação de complementariedade, sem culpas e sem cobrança. A mulher-borboleta é capaz de sorrir e brincar, mas também é capaz de trocar de flor ou até de jardim... A luz que se apaga não apaga seu colorido, apenas a faz avaliar e resgatar o verdadeiro valor que tem dentro de si mesma. Flor e borboleta são complementares, vivos, e cheios de cores. Flor e borboleta estabelecem uma relação de amor.
E aí volto meu pensamento para a pergunta inicial: Qual a dimensão das coisas na minha vida?
Em que momento sou mais mariposa vendo nas pessoas o que me falta para preencher os espaços vazios? Estes espaços se traduzem naquela voz infantil que sussurra no meu ouvido: “estou sozinha, estou triste, estou com medo”...
Quantas pessoas-coisas transformei em lâmpadas permanentemente acesas para acalmar meus medos? E quantas vezes fui eu mesma lâmpada para outras mariposas? Tudo o que eu precisava era que a lâmpada se apagasse para me recolher para dentro de mim mesma, redimensionar meus espaços vazios, rever meus medos e... num milagre de renovação, conduzir a voz infantil que sussurrava em meu íntimo para a luz. Não a luz de mais uma lâmpada, mas a luz do conhecimento. A luz do crescimento. A luz que sempre esteve ali conferindo cores e brilhos em minhas asas. Não quero ser mariposa, e também não quero ser lâmpada. Quero ser borboleta e quero ser flor... Quero permitir o espaço de liberdade (não mais espaço vazio) por onde a verdadeira vida pode acontecer. Quero isso hoje, quero isso amanhã, quero isso sempre. Isso é desapegar-se de mim mesma, de minhas lâmpadas arcaicas e infantis, para ver no outro o que o outro pode finalmente ver em mim...
Cladismari Zambon